quinta-feira, 2 de abril de 2009

Literatura

Viva os 35 graus

Douglas Kawaguchi

O relógio marcava 1h35 da manhã do dia 31 de dezembro. O calor era tanto que se algum termômetro acusasse menos de 35 graus eu julgaria uma brincadeira de mau gosto. Com a janela escancarada e sentado sobre a máquina de lavar eu mordiscava um sanduíche, quando ela apareceu pela primeira vez. Ela, a moradora da janela em frente. Não, não cabe aqui chamá-la moça, mulher, garota ou rapariga, já que nestas condições tudo o que importa é que ela era a moradora-da-janela-em-frente – ainda que não se possa morar numa janela.

Pois ela entrou de repente no quarto, acendendo a luz. Era o último andar do prédio vizinho, a poucos metros de mim e meu pão e, com a janela totalmente aberta, ela cruzou de uma vez meu campo de visão, sem notar minha expressão de susto. Presumo que voltava de uma festa, pelas roupas. Permaneci estarrecido durante aqueles dois ou três segundos que, na película de um filme, durariam muito mais. Recobrada a consciência, num impulso instintivo e intuitivo, voei até o interruptor e apaguei a luz. Esperei, sem agachar ou me esconder numa posição imoral. Pelo contrário: apagado no escuro, eu aguardava confortavelmente, como numa poltrona de cinema. Generosa, ela reapareceu. Somente com as roupas de baixo. O branco da lycra contrastava com a pele morena. A cintura poeticamente delineada dividia em dois o corpo de proporções áureas: nem grande, nem pequeno. Ideal, somente. Sempre de costas, procurou algo na cama, achou e vestiu: um pijama de seda. Amarelo. Mas por cima da lingerie, que falta de cuidados com o conforto! Depois saiu do quarto. Como deixara a luz acesa, julguei que voltaria para o bis.

Creio que logo se arrependera do show deveras tímido porque, um ou dois minutos mais tarde, voltou. Na minha tela widescreen, de costas, tirou o pijama, sem suspense. E depois o sutiã. E depois tudo. Morena (já disse, eu sei). Analisou uma camiseta, levantando-a com os braços. Não, outra. Deixe-me ver... não, também. Tão feminina. Nesse decide-não-decide, ameaçava, mas não virava de frente. De repente virou-se de lado, de perfil. Caprichosamente, seu umbigo tocava a linha esquerda da janela, de modo que os seios se esconderam nos bastidores de um ponto cego. Alguém que a filmasse nua e depois censurasse colocando mosaicos nas partes íntimas não as delinearia com a mesma precisão com que a janela o fez, irônica. Calmamente, virou-se de costas mais uma vez e finalmente vestiu outro pijama, azul. E apagou a luz. Nem foi até a janela para me dizer boa noite. Mas não precisava: é como se o tivesse feito, já que começava aí um longo, longo relacionamento.